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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Borboletas por cianeto


E
nquanto você tranca a porta, eu tranco minha mente. Não vamos falar, não vamos encarar. Você sabe o quanto isso está doendo em mim, talvez ainda mais do que em você. As palavras saíram todas pela metade, e eu fiz exatamente como sempre... Deixei o medo engoli-las como se fossem jujubas vermelhas.
Eu nunca gostei das verdes, e você sempre as comeu para mim. As verdes e laranjas. Eu só queria as vermelhas e roxas e você comprava vários pacotes apenas para eu comer as que queria. Eu gosto de ver cores e lembrar disso, pai. Só não sei se é verdade. Meus olhos já estão tão embaçados de lágrimas que eu não consigo enxergar o que é real e o que não é. Eu não sei se vivi isso ou se eu criei para acalentar o que não tive. Mas eu gosto de como sinto essa memória. As jujubas grudando nos meus dentes, nós três deitados assistindo seus seriados policiais favoritos. Eu não queria que você descobrisse dessa forma.
Eu sempre amei kinderovo. Duas cores. Duas faces completamente diferentes uma da outra mas que se completam. Assim como eu, pai. Não que eu seja branca por dentro ou negra por fora. Menino por dentro e garota do outro lado. Eu sou os dois. E eu não consigo escolher o lado certo pois eu sei que eu estaria errando. Eu estaria matando metade de mim, talvez a metade mais completa. E eu nasci assim, eu posso esconder, mas morrerei assim.
Você tranca a porta e eu troco a máscara. Eu não aguento mais esconder, eu não aguento mais mentir. Eu sei que esse é um mundo selvagem mas eu não quero deixar de respirar. Eu sei que você me ama e espero que você aceite a minha outra metade. Ela existe e eu não consigo mais matá-la para sobreviver. Eu sei, no fundo eu sei, que a próxima vez que ela partir eu irei junto.
A culpa não é da moda, dos amigos, das companhias. Eles sequer conhecem meu seriado favorito ou sabem quem canta minha música predileta. Eles não ligam. Eles não entendem e desprezam a minha outra metade assim como vocês também o fazem. Isso não é de agora, não é a primeira, nem a segunda, nem a quinta e nem a última vez. Eu queria continuar a ver o mundo com os olhos de antigamente e acreditar piamente que todos achavam isso normal. Não ver maldade ou sujeira nisso como vocês vêem.
Eu me sinto suja, eu me sinto errada se eu me enxergo inteira com seus olhos. Mas quando eu visto os meus e os abro eu me vejo de verdade. Eu me vejo livre e completa. Eu me vejo como eu espero que vocês aceitem pois eu preciso de vocês assim como eu preciso dessa minha metade.
Pai, a culpa não é sua, você não errou na minha criação. E mãe, minha querida, eu não escolhi por isso assim como você não escolheu ter nascido filha de quem é. Eu os conheço e quero que vocês me conheçam de verdade agora. A Françoise sabe disso e confia em vocês cegamente, mas minha outra metade precisa de amigos verdadeiros agora. Ela precisa de vocês.
Eu não devia precisar confessar isso como um pecado ou como algo do qual tenho vergonha. Vocês não deviam evitar isso e não me aceitar por completo por ser errado ou sujo. Eu tentei fugir e tapar meus olhos sempre vermelhos e inchados com meus óculos bonitos. Mas as asas da minha imaginação já estão perdendo sua cor e eu não encontro mais nenhuma outra desculpa. Já não tenho respostas na ponta da língua para situações que deviam ser bonitas. Eu já não tenho mais forças para sufocar quem persistir em lutar. Mas meus bichinhos dizem que tudo vai ficar bem e eu sei que eles sempre estão certos... Exatamente como naquela canção.
Almoços em família, reuniões de Domingo a tarde... Deviam ser normais e eu devia poder ser verdadeira. Vocês deviam estar felizes pois eu me acertei agora, eu sei que sou completa agora. Nós devemos tanto e pagamos tão mais. Pra quê?
Você tranca a porta e eu pego o saquinho de jujubas. Elas parecem mais amargas agora. Não encontro nenhuma vermelha ou roxa, você as levou daqui. Elas grudam no dente e machucam, arrebentando todo meu interior e explodindo em meu estômago. Eu conheço o sabor das verdes e laranjas agora.