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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009


Foi em 13 de Outubro de 83. Eram suas bodas de rubi. A Terra girava certa como sempre e ironicamente era Primavera quando vi Vovó mudar. Ela secou num piscar de olhos, como planta que a gente deixa de regar só porque se esqueceu de onde diabos deixou o regador e suas folhas vão secando pouco a pouco, do verde para o amarelo, até caírem duras, secas, mortas.
Folha a folha até restarem-se apenas os galhos, nus e magros. E com a Vovó foi bem assim, como se um dia eu fosse dormir com ela rechonchudamente alegre e brilhante, e no outro acordasse com ela apagada, oca.
Eu tinha lá pelos meus nove anos, com meu vestido azul rodado e os cabelos amarrados, quando atendi ao pedido de mamãe e fui chamar a Vó Nena para partir o bolo e tirar mais um bocado de fotos. Corri pelo corredor repleto de fotografias dela com o Vô Velho, com a fome me apressando e fui logo enfiando a cara pela porta entreaberta.
Vó Nena estava sentada na cama, parada com a cara congelada de dor. Em seu colo estava uma pequena caixa de sapatos entupida de papéis e outras coisas.
Ela segurava forte o que parecia ser uma carta, suas unhas bem polidas quase rasgando o papel. Parei na porta por um tempo, quase como se também estivesse congelada de dor, se é que eu sabia o que isso significava naquela época. Entrei e sentei-me ao seu lado, puxando a caixa para mim. Vovó segurou meu pulso, me fazendo parar no meio do caminho. Seus olhos brilhavam com lágrimas, fixos no armário com a porta aberta.
“Eu estava procurando os brincos que seu avô me deu em nosso primeiro aniversário de casamento. Eu não me lembrava bem onde eles estavam, mas sabia que havia os guardado até hoje, por aqui, em alguma caixa. Não sei por que, mas senti que talvez devesse procurar na parte dele do armário... estúpida idéia, não é mesmo, meu docinho?” Ela se virou para mim e eu apenas confirmei com a cabeça, fazendo minhas tranças balançarem, acompanhando a primeira lágrima gorda que rolava por seu rosto. “Todos esses anos e eu nunca toquei em nada dele, respeitei seu espaço, honrei com minha parte do trato. E hoje, logo hoje, meu maldito destino me prega esta peça... o destino é algo muito azedo, sabia, querida? É, é azedo sim, não há desculpas. Se não lhe azeda na entrada, com certeza o fará na saída.”
Olhei para a caixa e vi a foto do Vô Velho ainda moço, com uma mulher ao seu lado. Bonita, ela parecia ter vindo ‘dum’ daqueles filmes ou da televisão, tão diferente da Vó... ela não tinha jeito de vó, não tinha jeito de mãe e eu nunca tinha visto uma mulher assim, ao menos não tão de “perto”. Hoje eu sei que ela tinha jeito de mulher, de mulher que a gente não encontra dentro de casa. Pensei que talvez ela fosse uma tia minha ou coisa que o valha, mas vovó não me deixou perguntar, apenas me abraçou forte, com seus cabelos loiros e bem penteados se esfregando em meu rosto, com seu cheiro de massa de bolo. Até hoje, nessa fatídica tarde de Agosto, me lembro da vovó quando alguém assa um bolo. Cheiro de casa.
De qualquer forma, vovó apenas me abraçou e me prometeu que um dia, quando eu estivesse mais velha e não fosse mais menina, mas sim uma mulher feita, um dia eu entenderia. Mas que agora era hora de guardar a caixinha especial e esquecer a idéia imbecil dos brincos, pois estava na hora de partir o bolo e comemorar o casamento deles. Ela resmungou mais algumas outras coisas sobre casamento, confiança e traição, mas só o que ficou gravado na minha cabeça oca de criança, foi que mulher que era mulher, cheirava a desejo, não a massa de bolo, pois só assim, sendo verdadeiramente mulher, que se é amada.
Não dei muita bola a nada que ela tinha dito, nem mesmo isso, porque toda essa história de amor e mulher e traição não significavam nada para mim quando comparados à Emília ou o Balão Mágico. Então eu só sorri e disse a ela que estava tudo bem chorar, por que eu sabia que era choro de felicidade e que quando é assim, de felicidade, faz bem chorar, por que só lembra a gente do quanto somos felizes. Ela então sorriu para mim, secou as lágrimas com seu lenço e levantou para se ajeitar em frente ao espelho. Dei uma última espiada na caixa em cima da cama e estendi minha mão a ela, e assim passei de volta pelo corredor recheado de memórias em quadros.

Vovó entrou na sala e encarou Vô Velho por um bom tempo, os quatro olhos fixos uns nos outros, como arma mirando num alvo, gelados e pontiagudos. Vovô baixou a cabeça, suspirando enquanto ela dançava pela sala entre os convidados com a mesma desenvoltura de sempre. Finalmente fomos até a mesa no quintal, onde estavam o bolo e todas as outras coisas que não podíamos comer antes do “Parabéns” porque era coisa feia e falta de educação... ou consideração, que seja. Fiquei bem ao lado deles, ansiosa por aquele brigadeiro, tentando tirar uma lasquinha com o dedo ou coisa que o valha. Vi vovó encostar a boca pintada de vermelho na orelha de seu marido e sussurrar “Eu sei de tudo.”. Ele apenas engoliu forte a saliva, fazendo seu pomo de Adão se mexer e assim a festa continuar, sem mais interrupções. Ou talvez eu que simplesmente não tenha notado mais nada depois que caí de cara no brigadeiro que só ela sabia fazer.
E foi a partir dali, assim, que vi Vó Nena secar, pouco a pouco, se esvaziar feito bexiga de festa sem ninguém nunca entender o porquê. Mas os anos se passaram e como já era de se esperar, os dois já se foram e eu cresci sem muito revisitar o quê havia acontecido naquela tarde. Sem muito pensar naquilo até hoje.
E então chegou 16 de Agosto de 2002. Um dia comum, uma tarde qualquer, típica de Rio de Janeiro. Saí cedo do trabalho devido ao enjôo infeliz que não arredava o pé de mim. Era pouco depois da hora do almoço quando passei a chave pela porta, largando minhas coisas pela mesa e seguindo para o quarto. Na pequena mesinha ao lado da cama, achei o celular do meu marido. Diogo era uma verdadeira cabeça de vento que sempre se esquecia de tudo, mas nunca de carregar o celular consigo como se sua vida dependesse de tal coisa. Meu estômago dançou dentro da minha barriga, piorando a náusea que vinha azedando meu dia desde manhã. Estiquei-me até o celular e peguei-o com ligações perdidas e mensagens recebidas. Abri o flip, sentando em nossa cama de casal impecavelmente arrumada. Várias das ligações, todas as mensagens eram de uma Simone. Elas vomitavam paixões e apelidos carinhosos e clichês, com um fogo que nunca havíamos sentido. Pois não, eu não, mulher com o mínimo de respeito não iria me rebaixar a tal nível de abrir meu corpo para tais fantasias, ao menos não em voz alta. Mulher que é mulher de verdade, mulher que se preze, se respeita, não é mesmo?
Que seja! Nada disso fazia diferença agora que meu coração gelou, comigo sentada na cama com a cara congelada de dor. Do nada, não sei por que, lembrei daquela tarde de Outubro na casa da Vovó. Agora eu já não era mais menina, era mulher feita, construída o suficiente para aguentar a chuva de concreto que caía lentamente, mensagem a mensagem, sobre minhas estruturas. Agora eu era grande o bastante para entender. Maldita tarde de calor, maldito forno chamado Rio de Janeiro. Maldita gravidez com todas as suas complicações e enjôos e frescuras. Tudo por que o destino é assim, azedo, e já não era hora de ele vir dar seu toque de limão em minha vida. Naquela tarde típica de Agosto, eu sequei. Engoli forte minha saliva, tentando umedecer as idéias, apertando o maldito aparelho, tentando voltar no tempo e o lembrar de levar o celular, o lembrar de não perder meu regador, de não errar, de não me deixar secar. Mas não, agora era hora de guardar aquela caixinha especial e deixar o destino azedar de vez a minha saída, solar meu bolo.
Mas antes eu deixei ali, na prova do crime, como nota de rodapé na notícia - “eu sei de tudo.” E então nossa porta bateu...