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sexta-feira, 7 de março de 2008

Revirou-se na cama, não conseguia dormir. Não que ele não estivesse acostumado com as camas frias dos hotéis luxuosos que freqüentava, mas aquela noite estava particularmente... vazia.
Não sorria há um bom tempo; eles não se falavam há um bom tempo. Para dizer a verdade, ele sequer pensava naquela mulher desde que chegara à casa do amigo. E quando aquela garota estranha do cabelo azul o lembrara de sua existência, foi como se uma alavanca tivesse sido acionada dentro de seu estômago e berrava a plenos pulmões: "Você está vivendo uma mentira!".
Revirou-se na cama, não conseguia permanecer acordado. O sono pesava em sua pálpebras mas a dor as mantinha abertas. Não, não era dor; ele tinha tudo. Tinha mais do que qualquer um pudesse querer, e ainda assim faltava tudo nele. Passou o Dia dos Namorados em um vôo atrasado com o melhor amigo. Não fumava há horas. Já nem lembrava mais do gosto da nicotina ou do rosto da sua mulher. A vida estava sendo irônica novamente, e aquela caixa incomodava seus olhos como se estivesse coberta de neon.
Ele finalmente se levantou, abraçando a si mesmo. Já era um homem feito, trinta anos na cara e ainda assim continuava um indefeso. Aproximou-se da mesa, com o laptop e seu café pela metade. Pegou a caixa e sorriu; "ela é estranha", pensou. Abriu e admirou os presentes. Eram criativos e de certo ele não esqueceria de nenhum deles, mas olhá-los aumentava ainda mais o peso em suas costas. Ele sentia culpa, arrependimento por algo que ele nem sequer sabia ter feito. Pegou o caderno e segurou o choro, sentia-se deprimente. Correu as folhas até encontrar a parte reservada para ele. Era fria. Não havia desenhos nem declarações, apenas aquele recado para o cafajeste que ele vinha sendo. Tinha o cheiro dela ainda, sua caligrafia e suas marcas. As marcas que ele a havia feito.
Por um momento pensou seriamente em queimar tudo aquilo. E depois se afogar no vaso com a cara na merda. Mas ele não teria coragem, não era tão ridículo assim. Era mais escroto do que podia agüentar, mas chegaria a tal ponto?
Ele sabia que não. Por curiosidade, aquela que matou o gato, resolveu ler tudo aquilo do começo ao fim; de cabo a rabo. E chorou, como há tempos não fazia. Como não o fez em seu casamento. Ele sabia que havia salvado vidas mas nunca tinha visto uma delas assim tão exposta. Nunca havia tocado as feridas tão de perto. E sentia-se leve. Como se seu corpo já não mais existisse e apenas uma linha tênue de culpa e orgulho o prendesse à Terra. Terra aquela que girava sem parar um segundo sequer, que o girava para longe daquela menina. Aquela menina de quem ele salvou a vida e a destruíra tantas vezes.
Passaram-se mais uns dias. Ele a vira novamente, ele via fúria nela, fúria nele. Fúria no quê eles não tinham e ainda assim jogavam fora. Fúria pelas noites que ele estava perdendo com uma desconhecida que fazia mais sentido pra si do que aquela que dormia ao seu lado. Ele não dormia, não comia, não sorria. Ela estava sugando sua vida sem ele sequer saber sua cor predileta.
Ele largou para trás a caixa, iria finalmente desprender-se daquela sanguessuga. Seus companheiros não gostaram nem um pouco da idéia, o ignorando completamente. Seu melhor amigo o xingou de certos nomes que ele nunca esperaria ouvir; mas sabia que eles tinham toda a razão. Ele realmente era tudo aquilo, mas não podia simplesmente deixá-la levar a única coisa que ainda lhe restava - seus pensamentos.
Tremia; não esperava que ela descobrisse. Quando a viu entregando a caixa para seu subordinado sentiu a Terra girar novamente. E logo eles estavam ali, frente a frente. Ela o encarava jazendo no mesmo nível, sem medo algum. Ele não a intimidava mais, a garota havia crescido. De certa forma estava orgulhoso, mas não podia deixá-la ir. Queria que ela ficasse assim, exatamente assim. Que ela morresse exatamente como estava; o desejando como ninguém jamais o fez. O desejando mesmo conhecendo suas piores faces, mesmo sabendo o quão podre ele era por dentro. O desejando mesmo sabendo que aquilo não lhe trazia nada além de dor.
Dor. Há muito ele não sabia o quê isso significava. E logo ela estava ali; com cabelos coloridos e roupas estranhas, dor havia ganhado toda uma nova roupagem, uma nova fantasia. E parecia tão mais interessante agora.
Aproximou-se dela, que sorria com o loiro, o olhando com tal carinho e ternura que talvez ele nunca receberia novamente, ao menos não dela. Aproximou-se e tentou travar uma conversa, mas ela simplesmente parecia não ouvi-lo. Ela estava a salvo agora e ele não podia machucá-la nem uma vez sequer. Ele era um fantasma.
Mais alguns dias se passaram e aquelas palavras continuavam a assombrá-lo. Como ela podia se achar feia?! Estava feliz agora que chegou até aqui? O quê ela iria fazer? Ele berrava alto segurando sua aliança e tentando pensar em quem o amava, a quem ele pertencia, e não naquela criança que mal acabara de sair da infância e já o atormentava. E então ela apareceu. "Meu Deus", esbravejou. "Ela está por todos os lugares". Não havia mais saída, ela iria segui-lo por onde quer que ele fosse. E ele não podia evitar mas simplesmente amar o fato de que ela sempre estaria ali para protegê-lo, mesmo sendo ela a criança, e não ele.
Seu coração saltava toda vez que a olhava. Ela estava linda ali, livre. Feliz. Eles estavam em casa. Saiu do palco e pediu para que a procurassem. Ouviu um não como resposta; não, ela não podia ficar. Ela tinha de ir para casa. Ela tinha uma vida e ele não fazia parte dela, não é mesmo? Seguiu para a mesma cama fria de seu hotel de luxo. Quase havia cometido um dos maiores erros da sua vida, ou não. Revirou-se nela. Leu e releu o caderno. Rasgou as tão odiadas folhas e tudo que conseguiu fazer foi guardá-las dentro de seu próprio caderno. Não, ele não conseguia livrar-se dela.
Um novo dia chegou e nada do sorriso daquela menina. Nem uma palavra de ódio, nem nada. Vira suas amigas mas nada da presença dela. Estava sem fome mas sentia-se fraco e sabia que tinha de comer algo. Pegou um pouco de comida e sentou sozinho, afastado de todas aquelas pessoas desconhecidas e sem se importar com as meninas que o assistiam pelo vidro. Mastigava pesadamente e tentava engolir aquela comida estranha, nova. Sabores nunca experimentados antes; nunca experimentados antes até ela entrar em sua vida... e desaparecer. Olhou para seu copo, para seu guardanapo. Olhava as pessoas ao seu redor. Ele tinha tudo e não possuía nada.
Não tirara seus óculos escuros desde então. Seus olhos verde oliva pareciam ainda mais verdes, destacando-se da brancura e da vermelhidão de sua face inchada. Não fazia a barba há dias, não colocava uma roupa limpa há tempos. Agora era hora de deixar aquele país e também aquela vida; aquela menina.
Pensara seriamente em deixar a caixa e as lembranças para trás, mas ao tentar fazê-lo sentiu uma parte de si morrer. Uma grande parte que até então estava adormecida. Guardou-a em sua mala, entre as roupas que nunca usara. Esconderia em casa onde sua mulher jamais poderia encontrar o amor que jamais poderia lhe dar.

Logo ele faria trinta e um anos e não havia mais saída alguma, ele estava fardado a terminar seus dias com uma outra pessoa. Mas enquanto seus olhos pudessem recordar-se dos dela, ele jamais sofreria novamente. Ele jamais se sentiria sozinho outra vez. E quando sua vida se esgotasse num véu de balas, seriam os dela que ele encontraria.