Recent Posts

terça-feira, 19 de maio de 2009


- "Hoje eu vi uma batida de carro. Foi bonita. Ninguém morreu."
Pausa para tragar.
- "Aconteceu na minha esquina, assim, bem debaixo da minha janela. Ninguém parou pra ver, só eu e ela. Estávamos com sono e tentávamos conversar sobre algo que fizesse sentido ou que tivesse algum conteúdo, em vão. Pois realmente estávamos com um puta sono, você me entende?"
Silêncio.
- "Mas aí então... ouvimos o barulho. Eu não liguei mas ela foi logo correndo pra janela, de curiosa que é. Falou que "Olha, nossa! Uma batida! Vem aqui ver!" e eu tava querendo era fumar, você me entende? Então eu pensei que ia mesmo era levantar e quebrar mais outra regra da minha mãe e fumar aqui no quarto mesmo. Mas aí eu logo desisti porque já, já a velha ia aparecer me dando bronca e eu não ia saber mais o que fazer pra poder fugir e... mas aí então eu vi a batida. Era bonita assim, tinha mulher no meio, ? Mas ninguém morreu. O cara, assim, era um táxi, sabes? Desses amarelos tipo crente que somos Big Apple mas aí tá, era um táxi e o carro de uma outra mulher, que parecia ser bonita, e nesse táxi tinha um passageiro de mochila, que também parecia ser bonito e tudo o mais, e ele saiu mancando, mas mancando sem motivo, você me entende? Por que a batida nem foi tão forte assim! Foi bonita pra cacete e tudo o mais porque foi bem aqui na esquina da Princesa Isabel, cara! Bem ali naquela parte que tem aqueles troços de concreto que mais parecem bancos, bem debaixo do relógio que olha só que coincidência, velho! No relógio mostra o horário, óbvio, e a temperatura. Umas três horas, por aí, não passava disso. E nem tava muito quente não. Mas o quê eu realmente queria te falar sobre esse relógio aí é que nele tem sempre uma propaganda de alguma coisa, sabes? E a propaganda da vez era desse novo filme do Tom Hanks, é. Mais um daquela saga do cara que eu esqueci o nome, até porque os livros dele são uma puta merda, mas enfim, o nome era Anjos e Demônios e aí eu pensei "Nossa, dá um troço legal pra escrever sobre!". 'Tá, mentira. Pensei porra nenhuma. Só lembrei agora que tava te contando isso que tinha essa propaganda desse filme aí no relógio."
Pausa para respirar fundo e tragar novamente.
- "Mas aí acabamos vendo o cara lá mancando e tentando atravessar a rua e ela disse que se fosse ela, o cara de mochila bonito e tudo o mais, ela não pagaria porra de corrida nenhuma e eu só concordei com a cabeça meio assim como quem não se importa o suficiente com a conversa pra abrir a boca mas também se importa o bastante pra não deixar nenhum silêncio tomar o lugar. Aí ela me deu um soquinho no braço e, 'tá, essa parte eu não me lembro muito bem se é verdade não mas deve ter sido bem assim mesmo, sobre o soquinho e tudo o mais, porque ela sempre faz isso! Mas aí então suspiramos e voltamos pros nossos lugares de antes, eu no computador, como sempre, e ela na cama, como sempre, com aquela cara de sono. E aí voltamos a tentar encontrar algum assunto que fizesse sentido o suficiente para nos despertar daquela marola louca de sono e o caralho, mas cara, quando você mais quer fazer sentido é quando você menos consegue, você me entende?"
Silêncio.
Traga novamente.
- "Aí ficamos naquela coisa assim, aqueles assuntos sem sentido, aquelas frases soltas, um gemido aqui, uma reclamação ali e então ficamos lá, meio que paradas no tempo. É nessas horas que eu percebo o quanto ela significa pra mim. Porque sabe, não é com qualquer um que eu consigo ficar assim nessa conversa sem eira nem beira, principalmente quando eu ' morrendo de sono e numa puta duma fissura pra fumar. Mas aí eu poderia passar a tarde toda daquele jeito olhando pro teto e a ouvindo reclamar. Mas aí resolvemos passar na minha tia porque ela pode sempre nos tirar do tédio e, caso estivesse assim toda sonolenta também, ela sempre estará fumando unzinho, você me entende? Aí ela fala assim, com aquele jeitinho de quem não sabe nada de porra nenhuma, exatamente o quê a gente precisava escutar. Desde qualquer besteira sobre a posição da Lua no nosso signo ou essas coisas de mantras tipo muxi-muxi ou o que o pó faz com a gente ou o quê ela fazia aos treze anos. E é bem numa dessas baboseiras que ela solta a pérola da vez. E, entre cigarros e conversas sérias e frases soltas e esperanças lançadas, eu passo assim as horas com amendoins e sucos de soja repousados em cima do violão desafinado. É bem legal quando você tem alguém assim que possa te acompanhar até a outra ponta da esquina só porque vocês estão com sono."
Pausa para tentar terminar o cigarro.
- "E nem parece falta de educação, sabes? Assim, ficar caladona do lado dela. Porque ela entende e ela vai tá sempre do meu lado, você me entende? Ela é a minha pessoa, cara! E assim falando esse bando de baboseiras eu me sinto com uns quinze de novo e pronta pra fazer qualquer merda que vá tomar o mundo. E assim, com ela do meu lado e tudo o mais. Só que aí, quando você tá nesse seu mundinho do sono, a hora passa tão rápido que logo eu tinha que descer pra buscar o meu neném na escola. E eu nem tinha reparado que eu já havia crescido tanto, você me entende? Mas eu sei que vou ter sempre aquela esquina pra dobrar com ela, pra voltar pra quem eu era, pra voltar a respirar. Porque é ela, cara. A gente é bem assim, feito uma batida de carro logo na Princesa Isabel. É, a gente é bem assim. Mas aí o tempo teve que passar, ? Ele sempre passa; ele sempre me passa, esse filho da puta. Mas um dia eu pego ele, ok? Ele que me espere."
Silêncio.
Traga pela última vez e apaga o cigarro.
- "Mas aí então... saímos de volta do nosso mundinho pro mundo dos homens, dos grandes. Mas não tem problema não, meu chapa, meu anjo 'tá comigo. E só descemos mesmo porque eu realmente precisava fumar e já, já a gente vai voltar. Ah vai."